O país dos especialistas em leilões (e de um só tipo de leilão)

No Brasil, parece que ninguém gosta tanto de um leilão quanto os órgãos de controle e o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica). Falo isso em vista das discussões em torno da estrutura leilão do Tecon 10, o megaterminal em Santos, definida pela Antaq (Agência Nacional de Transportes Aquáticos) e das discussões havidas na área técnica e a recente decisão do plenário do TCU (Tribunal de Contas da União) sobre esse mesmo tema.
É impressionante: todos se sentem confortáveis para opinar sobre a modelagem dos certames –quando o normal seria que a decisão sobre esse tema coubesse à Antaq.
Em cada projeto de concessão ou arrendamento, há uma profusão de pareceres e notas técnicas em que se discute, com aparente segurança, as regras de habilitação, os riscos de concentração, e, neste caso, até as cláusulas de desinvestimento.
Curioso é que, com tantos “especialistas em leilões”, que discutem em detalhes as regras sobre habilitação, o país use há 15 anos, para julgamento das propostas em todas as concessões e PPPs (Parcerias Público-Privadas), sem variação, o mesmo formato: envelope fechado seguido de viva-voz, do qual participam apenas aqueles que estiverem em um determinado raio, definido no edital, da melhor proposta escrita. Um modelo simples, quase ritualístico, repetido de Norte a Sul, do setor de saneamento ao portuário. Ninguém parece incomodado.
Nenhum parecer se dedica a discutir se essa estrutura de leilão, desenvolvida no setor de telecomunicações nos anos 1990 e no setor elétrico no princípio dos anos 2000 é de fato a mais adequada para extrair valor público de contratos complexos que envolvem bilhões de reais e duram décadas.
O contraste é gritante. O debate sobre o arrendamento do Tecon Santos 10 envolveu o Ministério Público de Contas, o TCU, o Cade, a Antaq e o Ministério dos Portos e Aeroportos —todos emitindo longos pareceres sobre as regras de habilitação, quem poderia ou não participar, e sobre os riscos concorrenciais de uma ou outra regra de qualificação. Mas ninguém se deteve sobre as regras de julgamento das propostas, sobre a lógica do leilão: será mesmo que o modelo adotado —o mesmo de sempre— é o mais eficiente para equilibrar competição, preço e qualidade do serviço?
A teoria econômica dos leilões, campo consagrado desde os trabalhos seminais de Vickrey, e nos trabalhos mais recentes de Milgrom, Wilson e Klemperer, mostra que a estrutura do certame —o modo como se organizam as rodadas, a transparência das informações, as regras de lances e de revelação de valores— influencia diretamente o resultado. Pequenas mudanças podem alterar significativamente o valor arrecadado, o número de competidores e até o desempenho posterior do contrato. Nos países que estudam o tema a sério, o desenho do leilão é uma ciência, não um dogma administrativo.
Aqui, porém, os que se proclamam guardiões da concorrência se contentam em zelar por um modelo único, sem jamais testá-lo ou avaliá-lo empiricamente. As agências e os órgãos de controle parecem acreditar que, se a licitação tem viva-voz no fim, já há competição suficiente –pouco importa o número de rodadas, a informação disponível aos licitantes ou o risco de comportamentos colusivos. O modelo se tornou uma espécie de “vaca sagrada” do direito administrativo brasileiro.
Talvez o tempo desses “especialistas em leilões” fosse mais bem empregado se dedicassem algumas horas à literatura econômica sobre o tema —ou se lessem os próprios trabalhos que o Cade e o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) já patrocinaram há mais de uma década e que recomendavam a customização dos certames conforme o tipo de ativo e a estrutura de mercado. Leilões de concessões e PPPs não são meras compras públicas: envolvem contratos de 20, 30, 40 anos, em setores de risco elevado e assimetria informacional profunda. Tratar todos do mesmo modo é um convite à ineficiência.
O resultado dessa uniformidade dogmática é previsível: leilões com o número menor de competidores do que seria possível, propostas menos arrojadas e, por outro lado, muitas vezes contratos que já começam com duvidosa sustentabilidade. Mas, paradoxalmente, isso não parece tirar o sono de ninguém. Enquanto os pareceres se multiplicam, seguimos acreditando que entendemos de leilões – embora tenhamos parado de pensar sobre eles há muito tempo.
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